sexta-feira, novembro 09, 2007

S

Do ano em que morei com ele suponho que tenha tentado se matar pelo menos cinco vezes. Não entendo até hoje como alguém pôde falhar tanto nisso; verdade que muitas vezes quem o salvou fui eu. A primeira vez que aconteceu me espantei bastante, havia sangue espalhado por todo o banheiro e eu mal sabia o que fazer. Lá pela terceira já estava acostumado. Eu ligava para emergência, passava algumas bandagens e erguia seus pulsos. Era sempre esse o modo que escolhia. Por o ter feito muitas vezes já não era possível se distinguir cicatrizes, havia penas uma massa saltada disforme abaixo de suas mãos.
Depois de sair do hospital e voltar para casa ele invariavelmente brigava comigo. Dizia que eu não devia tê-lo salvo e o grande merda que eu era por se meter em sua crucial decisão, entre outras coisas. Mas pouco tempo depois as coisas voltavam ao normal e ficava tudo bem, isto é, até que ele resolvesse tentar o suicídio novamente. Acho que não é preciso dizer que isso era extremamente desgastante. Eu nunca sabia se devia salvá-lo ou não, quanto aquilo era apenas um pedido - um grito para chamar atenção – ou se era sério, se ele realmente preferia encerrar sua vida.
Foi por não agüentar mais isso que fiz um combinado com ele. De agora em diante, quando ele o fizesse (pois não havia nenhuma dúvida entre nenhum de nós que ele o faria novamente) deveria pintar um S em sangue na parede caso quisesse ser salvo. Se caso eu o encontrasse e não houvesse nenhum S na parede, iria embora e esperaria até ter certeza de que estava morto. Ele achou ótimo, concordou prontamente e sem questionamentos.
Dali alguns meses aconteceu novamente. Entrei em casa, abri a porta do banheiro e lá estava. Estirado no chão, ensangüentado. E na parede, bem acima de sua cabeça, um grande S, vermelho vivo, grosso, como se tivesse sido pintado com camadas e camadas de sangue para garantir que fosse visto. Fiz todo o processo mencionado. Rapidamente ele foi levado para o hospital e, mais uma vez, sua vida foi por mais um tempo prolongada.
Eu estava tranqüilo comigo mesmo. Desta vez não haveria razão para brigas. O S estava lá, grande e claro, ele quem havia escolhido não morrer. Mas é claro que eu estava errado. Segundo ele eu me confundi e o que havia na parede não era um S, o sangue havia apenas escorrido daquela maneira, eu que não tinha prestado atenção o suficiente. Ele insistiu nisso, mesmo depois de eu ter lhe mostrado a marca de sangue seco que ainda estava no banheiro.
Como não havia saída continuei apenas agüentando. Esperava que em breve, quem sabe, eu pudesse me mudar e me livrar dele definitivamente. Entretanto a solução chegou mais rápido do que achava que chegaria. Um mês mal havia passado e lá estava ele de novo. E, bem acima de sua cabeça, estava o S, mas com uma pequena diferença. Desta vez havia um grande X cortando a letra. Quem sabe eu tenha visto apenas o que queria ver, não tenho certeza e nem perco meu tempo pensando nisso. O que deduzi foi que aquele S não valia, foi feito inicialmente e logo depois abandonado. Acho que ele ainda estava vagamente consciente pois olhou para mim enquanto eu fechava a porta do banheiro. Saí de casa e fui tomar um café.
Quando voltei havia uma ambulância na porta do prédio. Justamente nesse dia ele esperava uma visita que, não sei porque, tinha nossa chave e entrou no apartamento. O resto é fácil de deduzir. Depois de sair do hospital ele teve a maior briga de todas comigo. Berrou como eu era desumano deixando-o para morrer daquela maneira, como eu simplesmente ignorei nosso combinado já que o S estava claramente lá. Eu apenas ouvi tudo em silêncio. Ele arrumou suas coisas e foi embora.
Eu poderia contar como pouco tempo depois disso ele acabou sendo morto em um estúpido acidente na cozinha ou em algum assalto. Claro que isso não aconteceu, seria uma ironia perfeita demais para poder existir. Se ele continua a tentando cometer suicídios eu não sei dizer. Só sei que ele constantemente conta a todos o monstro que sou e como o deixei ali, no chão, para morrer como um cão. Também gosta de salientar que se não fosse pela presença do terceiro ele não estaria mais entre nós agora. Quase nenhum de meus conhecidos continuou a falar comigo depois disso, e há menos deles a cada dia. Eu, em compensação, continuo a procurar algum produto de limpeza que retire a cor ferrugem do sangue do rejunte dos meus azulejos.

2 Comments:

Blogger lrp said...

Este comentário foi removido pelo autor.

7:10 PM  
Blogger lrp said...

não sei se foi intencional, mas tem um processo de domínio da casa ao longo do conto que achei mto legal: parecia ser uma república, aí tem "voltar para casa" e "Entrei em casa" até "dos meus azuleijos".

e eu ñ sei porq, mas riscar o S com um X e ainda querer ser salvo me pareceu lógico pra caralho!!!

7:10 PM  

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