domingo, maio 28, 2006

Mamãe morreu.


Eu não falava com muitas pessoas há um tempo. Isolado, ficava em casa a maior parte do tempo com os telefones desconectados Talvez por isso que eu tenha demorado a saber, ou quem sabe tivessem esquecido de me contar. Quem me disse foi meu irmão que me encontrou na porta de casa. Foi um bandido qualquer, em um assalto qualquer. A vítima fez algum movimento suspeito e levou um tiro. E foi assim que eu soube.


- Mamãe morreu.


No dia seguinte ocorreu o funeral. Eu já tinha passado por isso por causa de meu pai, e não estava nem um pouco animado pelo dia que estava a minha frente. Só não tinha muita certeza se meu desânimo ocorria pelas razões corretas.
Estava lá toda a minha família, gente que eu não via há muito tempo e provavelmente só veria de novo quando outra pessoa morresse. A princípio fiquei apreensivo que reprovassem o fato de eu não estar chorando, mas logo descobri que achavam que isso mostrava uma tristeza ainda maior em mim. Isso me deixou contente.
Fiquei ao lado do caixão o tempo todo. A tampa teve de permanecer fechada, o tiro havia acertado mamãe na cabeça. Dei a idéia de abrirmos apenas a parte de baixo, mas fui ignorado.
Todos os familiares vinham a mim empapados em lágrimas, o que foi horrível. Morro de nojo de lágrimas. Todos me diziam a mesma coisa, como minha mãe havia sido uma pessoa maravilhosa, como tinha muitos amigos etc. Um tio-avô de algum grau muito distante colocou um envelope em meu bolso que tinha cem reais. Eu não entendi o porquê, mas também não me questionei. Devia ser costume de onde ele veio.
A caminho do local de enterro uma velhinha me abordou e agarrou meu braço.Eu não tinha idéia de quem ela era, mas ela parecia me conhecer pois começou a conversar como se fossemos antigos amigos:
- Pobre garoto... como irá agora se arranjar sem sua mãe?

Eu já tinha quase trinta anos e morava sozinho a cerca de seis:
- A gente acaba dando um jeito.

Depois de ser enterrada pequenos grupos se formaram pelo gramado. Fiquei um pouco em cada um deles, mas a conversa era sempre a mesma. Todos concordavam que o nível da violência era absurdo e que da maneira como estava não podia continuar e que o povo deveria se mobilizar e fazer algo. Mas eles em si não faziam nada, diziam que era trabalho do governo.
Outro ponto que todos tinham em igual era o de quererem a cabeça do bandido servida em uma bandeja. Queriam queimá-lo, apedrejá-lo, arrancar seu couro, cauterizar seu anus, jogar sal e pimenta nos olhos, quebrar os dentes, arrancar as orelhas, entre outros. A mesma velhinha de antes, veio à mim:
- Você não gostaria de trazer a justiça à esse bandido com as próprias mãos?
- Ele deve ter tido uma razão para o que fez.

Ela se virou como se eu a tivesse ofendido e foi embora. Pelo que eu pude entender era um absurdo não cobiçar a idéia de vingança.


Cerca de dois dias depois do enterro encontrei meu irmão de novo à porta. Ele estava com um sorrisinho nos cantos da boca quando me disse: “pegaram o cara”.
Fui com ele à delegacia onde encontramos meu tio. O lugar era quente e todos corriam de um lado ao outro, constantemente, mas não pareciam nunca fazer nada. Pediram que esperássemos em um banco. Fiquei sentado olhando o movimento enquanto meu tio e meu irmão conversavam com policiais. Meu tio parecia estar querendo ser discreto mas pude ver quando colocou a mão no bolso e retirou de lá um rolo de dinheiro e colocou na mão do policial. Depois de algum tempo nos chamaram e eu e meu irmão entramos em uma sala. Dentro havia uma mesa e três cadeiras. Em uma delas estava o cara que tinha matado a minha mãe. Nos sentamos.
Meu irmão semi-serrou seus olhos e olhava fixamente para o bandido, suponho que tentando ser intimidador. Eu até não quis, ao menos não naquela hora, mas não me contive e soltei uma pequena risada. Ele então voltou com seu olhar normal e perguntou:
-Quais foram as últimas palavras dela?
- Ela não disse nada.
- Nem uma única palavra?
- Não, apenas levantou os braços e me entregou sua bolsa.
-Não fez nada além disso?
- Bem... você não deve querer saber...
- DIGA!
- Ela peidou.
-........ o quê?
- É, peidou, sabe? Foi o que eu ouvi. Na verdade acho que se cagou de medo.

Então eu entrei:
- Então quer dizer que o último som proferido por minha mãe foi o de um peido?
- É.
- Belo epitáfio.

Me espantei quando percebi, meu irmão não parava de chorar. Ele parecia tão confiante há poucos minutos e agora isso. O pedaço da mesa abaixo de sua cabeça já tinha uma pequena poça. Parecia que ele não ia conseguir dizer mais nada, mas ainda soltou:
- E POR QUÊ? MALDIÇÃO, POR QUÊ?!
- Por que, o quê?
- É, eu também não entendi. – eu disse.
- Por que teve de matá-la!
- Ah, isso. Bem, foi um acidente. Não sei direito, mas acho que um escapamento estourou perto de mim e me assustei. Acabei disparando.

Depois disso meu irmão se acabou. Chorava soltando pequeno grunhidos muito agudos. Eu não quis dizer nada no momento, mas era extremamente vergonhoso. Ele se retirou da sala e me deixou a sós com o assassino. Então ele se virou a mim:
- E você, não quer perguntar nada?
- Ah, está bem então.

Pensei um bocado. Não tinha a mínima idéia do que perguntar, não havia muito que eu queria saber.
- O que acha de nosso atual governo?
-Éééée, não há muito o que se achar. Mesmas promessas de sempre e nada de novo. Não é como se ainda esperássemos que algo vá mudar.
- O que achou do último cd do Radiohead?
- Achei muito bom. Apesar de críticas infundadas que acabaram por levar pessoas mais influenciáveis a não se interessarem pelo álbum.
-Aquele que critica os vocais?
- Esse mesmo.

Pensei por um tempo. Ele tinha razão. Eu mesmo demorei a comprar o cd depois de ler a tal crítica, e de fato era muito bom. Sim, ele tinha razão.
- Que tipo de assassino ouve Radiohead?
- Que tipo de pessoa pergunta ao assassino de sua mãe que bandas ouve?

Fiquei em silêncio por alguns momentos. Não tinha mais nada a perguntar. Antes de me levantar, instintivamente, lhe estendi a mão para me despedir. Com um sorriso irônico ele me levantou os braços e mostrou os pulsos algemados. Me retirei da sala.
Lá vi meu tio conversando com um delegado ou algo do tipo. Provavelmente fazendo os últimos acertos. Aquele cara não ia ver o sol nascer. Acho que eu não queria isso, mas não havia muito que pudesse fazer. Talvez até tivesse, mas no fundo eu não ligava e me faltava força de vontade, nunca tive muita. Em breve eu ia esquecer mesmo. Foi quando me toquei que não sabia o nome dele, uma pena. Foi o cara mais simpático que já conheci.




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